Sistemas Alimentares e Degradação Ambiental
A disponibilidade e o acesso aos alimentos é a base de manutenção da vida no planeta, algumas espécies desenvolveram a capacidade de produção do próprio alimento pela combinação dos elementos disponíveis no ambiente. Fenômeno da fotossíntese realizado por algas, plantas e certas bactérias e o fenômeno da quimiossíntese. Os seres humanos construíram saberes que possibilitaram habitar os mais diversos biomas existentes no planeta e, assim, darem continuidade à existência de seus povos por diversas gerações.
Em algum momento da história os saberes foram fragmentados, classificados e hierarquizados, e, a supremacia dos pensamentos, cultura e ideologia europeias sobre os diversos povos colonizados levaram à linearidade da percepção das problemáticas e, portanto, das soluções às diversas questões e desafios de cada território, pouco considerando-se seus aspectos ambientais, sociais, culturais e os saberes populares locais perpassados através das gerações durante milênios. Desta forma, à luz deste contexto foram desenvolvidos os sistemas alimentares no Brasil.
Segundo a Embrapa, a produção de alimentos entre as décadas de 50 e 60 no Brasil ainda era muito incipiente, não atendia nem mesmo a demanda da população brasileira, que passava por um intenso processo de industrialização e urbanização. A justificativa centrava-se na baixa disponibilidade e acesso às tecnologias produtivas (máquinas, equipamentos e conhecimentos), dos quais resultavam a pouca produção e os baixos rendimentos por hectare, e, portanto, exigiam-se que “extensas áreas naturais fossem convertidas em lavouras e pastagens”.
A questão foi solucionada com atuação em, basicamente, três frentes: i) Incentivo e financiamento de máquinas e equipamentos para a produção e processamento de produtos rurais, que aumentariam a produtividade por hectare sem a necessidade do incremento da mão-de-obra; ii) Fertilizantes e Pesticidas. O primeiro para a promover a “correção” dos solos improdutivos e para que os nutrientes necessários ao crescimento do cultivo fossem controlados e garantidos. O segundo para o controle de pragas; iii) Transgênicos. Como a modificação da soja, planta originalmente cultivada em climas temperados, que “ganhou” a propriedade de resistir tanto às temperaturas mais altas como, também, às “pragas tropicais”, assim chamados os organismos indesejáveis dentro do sistema econômico vigente.
A criação dos agrotóxicos começou com os estudos sobre armas químicas, utilizadas durante a Primeira Guerra Mundial. O paration foi usado como princípio ativo no gás dos nervos que pode matar um ser humano em pouco tempo, e foi também largamente, usado no combate de larvas de besouros, consideradas pragas nas plantações. A diferença entre o veneno mortal e o agrotóxico pode estar apenas na dosagem.
Os resultados desse manejo foram surpreendentes. De 1975 a 2017 a produção de grãos – arroz, feijão, milho, soja e trigo – passou do patamar de 38 milhões de toneladas para 236 milhões, o que significa um aumento superior a seis vezes. Tamanha produção possibilitou conferir regularidade e controle da alimentação dos animais destinados à pecuária – bovinos, aves e suínos – que, associado às tecnologias de controle sanitário e de saúde, apresentaram significativos incrementos de produtividade, colocando o Brasil entre os principais fornecedores de proteína animal do planeta. Com isso, a atividade agropecuária assentou representatividade econômica, em 2020, foi responsável por 27% PIB e 48% das exportações brasileiras.
Não é difícil de imaginar outras faces desses resultados. Em 2008, o Brasil passou a ser o recordista mundial de consumo de agrotóxicos. Um levantamento realizado pela Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, publicado em 2019, identificou que 30% dos alimentos que compunham as mesas das famílias brasileiras, apresentavam concentrações desses produtos acima dos limites máximos permitidos, produtos não autorizados ao uso de produção do alimento pesquisado, e até mesmo, substâncias proibidas no país. Os alertas sobre o uso indiscriminado dos agrotóxicos não são recentes, Rachel Carson, em Primavera Silenciosa impulsou o debate sobre as ameaças à saúde planetária causados pelos poluentes orgânicos persistentes, como por exemplo, o diclorodifeniltricloroetano (DDT) já em 1962. A bióloga Carson mencionou:
“... Nós permitimos que esses produtos químicos fossem utilizados com pouca ou nenhuma pesquisa prévia sobre seu efeito no solo, na água, nos animais selvagens e sobre o próprio homem”.
O DDT foi lançado em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial para combater artrópodes transmissores de tifo exantemático e piolhos. A eficiência do inseticida na eliminação das pragas favoreceu a sua aplicação nas plantações do planeta, inclusive no combate ao mosquito-prego - Anopheles sp., transmissor da malária, doença parasitária que ainda mata milhares de pessoas todos os anos no planeta. O uso agrícola do D.D.T. foi proibido nos Estados Unidos em 1973 e no Brasil em1985.
Além disso, estima-se que entre 60 e 100 milhões de hectares de solo apresentam algum nível de degradação, o que representa uma área superior à Espanha. O grande consumo e a poluição das águas, também, são aspectos preocupantes quando considerados os múltiplos usos deste elemento.
Dados do Ministério da Saúde do Brasil revelou que 25% das cidades possuem pesticidas na água de abastecimento urbano – pesquisa realizada entre 2014 e 2017. Testes obrigatórios das empresas de abastecimento detectaram 27 pesticidas, desses 16 eram extremamente ou altamente tóxicos e 11 estavam associados as disfunções reprodutivas e hormonais, malformação do feto e ao desenvolvimento de câncer.
Um outro grande desafio a ser superado no campo são as fronteiras sociais, a acentuada concentração de renda e riqueza confere a instalação da pobreza ou extrema pobreza rural à 4,7 milhões de produtores, os quais representam 92% do total. Isso significa que apenas 8% dos estabelecimentos geram e retém 85% dos valores produzidos pelo setor. Este cenário é reproduzido, também, no restante da cadeia como no processamento e na venda dos produtos, por exemplo, em 2016, 43% da comercialização eram realizadas pelos grupos Walmart, Carrefour e Pão de Açúcar.
Como se não bastassem os fatos históricos, atualmente tramita um conjunto de projetos de leis, apelidado de “Combo da Morte”, que coordenados deverão arrasar os território ainda restantes, são eles: PLs 2633/20 e 510/21 – da grilagem, em que anistia as ocupações em terras públicas de até 2500 hectares; 2159/21 – que flexibiliza o processo de licenciamento ambiental; 6299/02 – do veneno, que retira dos trâmites de aprovação dos agrotóxicos a Anvisa e o Ibama, concentrando as decisões no Ministério da Agricultura; 490/07 e 191/2020, que estabelecem o marco temporal para a demarcação dos territórios indígenas e a legalização da exploração minerária nesses territórios. Esta ação é coordenada pela Frente Parlamentar da Agropecuária, que é tecnicamente subsidiada pelo Instituto Pensar Agro (IPA), instituição mantida financeiramente por 48 associações do agronegócio, assim, estabelece-se a conexão do poder público aos interesses do mercado.
É inadmissível que a agenda pública, as pesquisas tecnológicas, a regulação de produtos de interesse público, entre outros, sejam controlados pelas grandes indústrias. É urgente a transformação dos processos produtivos, novas narrativas e propostas disruptivas devem ser levadas à cabo, e que por vezes, originam-se de movimentos insurgentes, muitas vezes mal compreendidos e sufocados pelo sistema hegemônico.
Fontes consultadas
Carneiro FF., et al. Dossiê Abrasco – Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: Abrasco; 2012.
Carta Capital. Agrotóxicos são detectados na água de 25% das cidades do Brasil. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/agrotoxicos-sao-detectados-na-agua-de-25-das-cidades-do-brasil/ . Acesso em 27 fev. 2023
Observatório do Agronegócio do Brasil. Relatório Os financiadores da boiada. Como as multinacionais do agronegócio sustentam a bancada ruralista e patrocinam o desmonte socioambiental. Disponível em: https://deolhonosruralistas.com.br/wp-content/uploads/2022/08/Os-Financiadores-da-Destruicao-2022-ptbr.br. Acesso em: 26 mar. 2023.
LEI Nº 7.802, DE 11 DE JULHO DE 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências.
Rosa, J.C. Inseticidas – degradações ambientais e agressões à saúde. Instituto Caminhos na Mata, 2019.
Rosa, J.C. Retrocesso Ambiental – Agrotóxicos. Instituto Caminhos na Mata, 2019.
(WHO) World Health Organization. Special programme for research and training in tropical disease. Geneva; 1995. (WHO – Twelfth Programme Report of the UNDP/World Bank).
O sistema alimentar hoje conta um modelo agrícola que gera degradação ambiental e que não é capaz de fornecer à população alimentos em quantidade e qualidade suficiente. Características que são identificadas, cada vez mais, pela insustentabilidade do ponto de vista econômico, social, cultural e ambiental com destaque à insegurança alimentar. O modelo agrícola deve buscar discutir o avanço do modelo agrícola atual a despeito de suas insustentabilidades e as perspectivas de criação de um sistema alimentar sustentável e com maior segurança alimentar.